terça-feira, 1 de junho de 2010

Relendo Dostoievski


Por: Gustavo Corção



Passei meus dias de carnaval relendo pela quarta ou quinta vez Crime e Castigo e terminei a leitura aturdido e maravilhado, como se pela primeira vez tivesse percorrido o mundo noturno e transluminoso em que a miséria humana tem uma estranha fosforescência. Como se... Não! Efetivamente li-o pela primeira vez. Um livro, ou pode ser lido dez vezes pela primeira vez ou não pode, não deve, e não vale a pena ser lido. Não ouso entrar no mérito com ares de quem quer explicar e interpretar uma obra de tal quilate. Mas não consigo deixar de transmitir algumas idéias sobre o livro, antes de publicar outras idéias que indiretamente me vieram da mesma leitura.

Há em Crime e Castigo, como não me lembro de ter visto em nenhum outro romance, uma prodigiosa densidade de bondade humana, sim, de uma bondade potencializada pelo sofrimento, torturada pelos entrechoques e atritos, perseguida por quase visíveis demônios, mas ainda assim resistente às máximas dilacerações. Estranho mundo em que as categorias morais parecem viradas pelo avesso, e onde se vê santidade nas mais desclassificadas criaturas! Em todo o livro um só personagem nos dá até fim, quase até o fim, uma terrível impressão de alma perdida, não pelo fato de ter assassinado a velha, mas pela insistência com que se atribui o titulo de único juiz de seus atos. Raskolnikov é o “intelectual”, como Ivan Karamazov, e é só na última página, num epílogo que nenhum escritor moderno teria coragem de escrever com receio do happy end, que Jesus crucificado, servindo-se do amor puríssimo de Sônia, a ex-prostituta, expulsa o demônio e devolve Rodion Romanovitch Raskolnikov à comunhão dos homens que neste mundo de mil maneiras imitam a agonia do Salvador.

O mundo hoje está cheio de “intelectuais” que não matam a velha usurária diretamente com um machado na cabeça por falta de grandeza: coletivizados, tornados multidão, cada um deles é um liliputiano que seria pouco temível se não fora o volume e o peso da massa. E o que essa massa espessa quer abafar, quer matar no mundo é a última confiança na bondade fundamental de que são portadores os homens mais miseráveis. Sim, o que cada um dos microscópios “intelectuais” quer produzir é um mundo cinzento, desoladamente imunizado dos choques, dos esbarros trágicos capazes de revelar as divinas centelhas escondidas na dureza da pedra.

A leitura de Crime e Castigo me trouxe a convicção melancólica de estarmos vivendo uma depressão histórica. O mundo inteiro está passando por um processo de laminação, de mediocrização, de perseguição de um conforto elementar e não creio ser possível em algum lugar deste mundo de hoje alguém escrever um livro como este e outros de Fiodor Dostoievski. Quem sabe se não seria melhor, mais higiênico, mais decente, calarmo-nos todos durante um milênio? Há livros demais. Creio que mil anos seria pouco para que toda humanidade alfabetizada relesse devagar, quatro ou cinco vezes, os livros merecedores de tal atenção. Por que essa sofreguidão de atos sucessivos, de leituras sucessivas? Por que essa correria? Por que não se recupera a humanidade a cadencia que lhe é própria? As editoras se multiplicam, os autores se improvisam, o crepitar, da maquina de escrever substituiu o compassado curso da pena no papel. E o resultado dessa atividade febril é a produção de dez mil livros, cem mil livros que não fariam falta nenhuma ao céu, à terra, às almas dos homens, se acaso não fossem escritos. Há em tudo isto uma estranha contradição: de um lado, a produção gigantesca, a montanha de livros que pediria vidas largamente acampadas no presente; de outro lado, a correria. Se queremos correr por que nos sobrecarregamos de tamanho bagaço?

Eu tenho um antigo e enraizado amor por livros. O que acabei de reler está deitado na mesa com sua lambada marrom e letras douradas. É um livro-livro, um livro que a humanidade levou milhões de anos a fazer. E o que está dentro dele é também uma seqüência de sinais que a humanidade, entre muitos ensaios e malogros, levou milhões de anos a conseguir. E ali está um livro, um libro, a book. Em russo não sei como se diz. E quando digo livro, libro, book estou pensando numa jóia mais rara e mais maravilhosa do qu a viagem à Lua. De tudo o que o homem tem feito na Terra, para dar contas d si e dizer ao que veio, creio que o livro é o ponto alto. E por isso mesmo se deduz que a maior degradação cultural do homem se mede em côvados de facilidades editoriais, e em quilômetros cúbicos de papel impresso com coisa nenhuma. Todas as grandes religiões têm na base de seu culto um livro. A nossa religião tem a originalidade de possuir um livro escrito com caracteres humanos, por mãos humanas, mas soprado por Deus. Ele mesmo o ditou.

Estou aqui recordando uma novela do mesmo Fiodor Dostoievski que li há cerca de mil anos. De memória dou o esboço do primeiro capitulo: num vilarejo do interior da Rússia um velho violinista vivia com sua filha ou neta Sonetchka. Um dia chega-lhe a notifica da passagem de um violinista de fama mundial pela cidade mais próxima. O velho siberiano prepara o trenó, agasalha-se, despede-se da neta e parte de manhã. Chega à noite, muito tarde. Vem curvado, abatido. Abre a caixa de seu violino, tira-o, tenta tocar... Recoloca- na caixa cuidadosamente, sobe ao sótão, traz uma corda, amarra uma ponta na soleira da porta, dá um laço no pescoço e sobe na cadeira. De manhã Sonetchka acorda aos gritos quando vê o avô pendurado e com a língua para fora.

Em termos menos trágicos, Chesterton disse que todos os homens devem fazer por si mesmos certas coisas tais como assoar o próprio nariz, educar os filhos, votar etc., ainda que as façam malfeitas; mas poucos homens devem escrever livros, pintar quadros, modelar esculturas, porque essas coisas só devem ser feitas se esses poucos são capazes de fazê-las sem desonra do planeta que talvez seja o único habitado por seres capazes de tais obras.

O leitor inamistoso estará perguntando se eu também não senti vontade de me enforcar quando acabei de reler Crime e Castigo. Se lhe agrada saber, malvado leitor, confesso que tive grande vontade de enforcar o pobre e inútil livro em cima do qual ingloriamente me mato.


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