terça-feira, 25 de maio de 2010

O espírito de Dostoievski



Nicolas Berdiaeff ficou celebre, depois da guerra, com a publicação de seu livro em que fez o libelo da civilização moderna e a apologia da civilização medieva, aconselhando que nos orientemos para uma Nova “Idade Média”.
“Há nesse livro – diz Pierre Lassere – toda uma filosofia da história, apocalíptica e realista a um tempo, que se aproxima das concepções da escola neotomista e faz pensar mais ainda em Joseph de Maistre, a quem o autor se refere”.
Ele confessa em nova obra, O Espírito de Dostoievski, muito falada e elogiada agora, que este representou em sua vida “um papel decisivo”. Berdiaeff, ainda adolescente, transportava-se, exaltava-se com a leitura dos romances de seu grande compatriota como não lhe acontecia em relação a outro escritor ou filosofo qualquer.
Ninguém estava em melhores condições, conseqüentemente, para penetrá-lo por um modo intuitivo, para incorporar-se ao extraordinário mestre, vivendo-o com a alma de um crente”, como lhe parece indispensável para penetrar no intimo deste como de outro grande escritor qualquer.
Enquanto entrou em declínio o interesse por Tolstoi, agora depois da guerra, Dostoievski empolga os espíritos atuais, de que parece contemporâneo. É que ele foi o verdadeiro profeta da revolução russa e no seu trágico dinamismo o precursor – agora se vê – deste sentimento catastrófico que vai hoje latente ou patente empolgando todas as almas.
Ninguém como Berdiaeff neste seu livro já pusera em relevo esse modo de ser próprio realmente ao criador gigantesco d’Os Irmãos Karamazov. Assim explica-se o grande sucesso da obra.
Dostoievski - pensa ele – “não foi apenas um grande artista, foi um grande pensador e um grande visionário”. Fez uma série de descobertas sobre a natureza humana.
Esta, segundo sua visão, é extrema, antinômica e irracional.
Há no homem uma atração irresistível para a irracionalidade, para a liberdade sem freio, para o sofrimento. Porque este é a única fonte do conhecimento. Ele não se acomoda com uma organização racional da vida. Põe a liberdade mais alto que a felicidade.
Mas esta liberdade não é a primazia da razão sobre o elemento psíquico. Não. É uma liberdade irracional no mais alto ponto, que arrasta o homem além dos limites a ele proscritos. Esta liberdade o tortura, o leva à ruína, o que mostra que ela destrói pelo arbitrário, que o homem se aniquila na revolta. Não obsta que ele acaricie tal tortura, tal ruína.
Diz Berdiaeff que essa dialética sobre o homem e seu destino, aberta em O Espírito Subterrâneo, se desenvolve através de todos os romances posteriores de Dostoievski e acha sua conclusão na Lenda do Grande Inquisidor, aí resolvendo-se pela imagem do Cristo. O caminho da liberdade há de conduzir ou à deificação do homem ou à descoberta de Deus. No primeiro caso o homem acha seu término e sua perda; no outro, sua salvação e a confirmação definitiva de sua imagem terrestre. Porque o homem só existe se é a imagem e semelhança de Deus. Se Deus não existe e este homem se faz deus a si mesmo, sua própria imagem perecerá.
“Eu não me espantaria – diz o herói d’Espírito Subterrâneo – se de repente, sem ninguém esperar, no meio de toda esta futura Razão universal, surgisse algum cavalheiro de fisionomia vulgar ou, por melhor dizer, um retrogrado e zombeteiro, que, com as mãos nas ancas, dissesse: como, senhores, não vamos então, reduzir de uma vez, com o pé, toda esta razão em cinzas, tendo por fim único mandar aos diabos os logaritmos e viver segundo a nossa absurda vontade? Isto não seria nada ainda, mas o mais vexatório é que Ele acharia logo adeptos: o homem é feito assim. Ele não é um termo aritmético é um ser problemático e misterioso”.
Isto que aqui transcrevo dará uma idéia muito pálida apenas do modo de ver que tem Berdiaeff sobre o grande autor que o alimentou espiritualmente desde a sua adolescência.
Mas não bastarão estas poucas linhas para mostrar que o extraordinário romancista, comparado por ele a Dante, a Shakespeare, de fato quase como que assistiu, por visão antecipada, aos trágicos sucessos que ainda transcorrem em sua pátria?
Não se vê, ao demais, por aí que ele foi essencialmente um russo e como tal um profundo conhecedor da alma de seu povo, contraditória e extremada como nenhuma outra civilização moderna conhece?

[O Estado de São Paulo, 11-7-1930]

Um comentário:

Prof. Minoru disse...

É isso mesmo que Berdiaeff escreveu no Espírito de Dostoiévski. É um livro que merece ser republicado com capa e edição luxuosa. O que se disse no texto é fundamental para o entendimento do verdadeiro cristianismo originário sem burocracia que Dostoiévski tanto condenou.
Obrigado.