terça-feira, 15 de junho de 2010

O ex-covarde

Nélson Rodrigues


Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"

Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.

Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.

O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.

Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.

Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.

Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo,

Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.

Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".

RODRIGUES, Nélson. In A cabra vadia (novas confissões), Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10.

terça-feira, 1 de junho de 2010

SOLZHENITSYN, o exemplo, o homem, a obra.


Alexander Solzhenitsyn revela, neste século XX de tantas acomodações, de esmagamento da personalidade, a verdadeira missão do escritor em face da sociedade. Acusado, perseguido, ameaçado em sua própria Pátria, da qual revelou crimes do Poder que ali se erigiu soberano há mais de cinqüenta anos, ele aguarda, com a tranqüilidade do dever cumprido, que se cumpram os tempos em que a voz da Verdade, ainda que abafada, possa ecoar em muitos corações.

Eis suas palavras reveladoras:

“Quem fala de crimes cometidos (como ele o fez) não se opõe à paz e às boas relações entre as pessoas e as nações, mais sim quem praticou os crimes”.

Afirmou estar “preparado para tudo”, tanto ele quanto a sua família, depois das acusações assacadas contra ele na imprensa soviética, após a publicação de seu livro “Arquipélago Gulag”, no qual denuncia os sofrimentos dos prisioneiros nos campos de trabalhos forçados da URSS, e os métodos da KGB – policia secreta.

O romancista, Prêmio NOBEL de literatura, está com a sua consciência em paz. Como escritor, testemunha de seu tempo não podia ficar impassível. “Paguei minha divida para com os mortos. Estas verdades estavam condenadas à morte. Eram pisoteadas, sufocadas, queimadas até serem convertidas em cinzas. Porém, vejam vocês: sobreviveram, estão vivas, foram impressas e ninguém jamais poderá fazê-lo desaparecer”.

E acrescenta: “Durante décadas, tanto foi que se ocultou que sua revelação sacudirá todos os que não tinham conhecimento dos fatos, lhes educará o coração e lhes dará luz e força para o futuro”.

Alexander Solzhenitsyn dá, com estas palavras, o testemunho da posição que o escritor, consciente de seu papel no mundo, deve assumir diante da sociedade. Não apenas da sociedade restrita, que o obriga e o circunscreve, que o limita e condiciona, mas daquela sociedade mais vasta, informada pelos princípios eternos do respeito à personalidade, que é o conjunto de todos os homens livres.

Ele é o observador atento dos acontecimentos de sua época. Corajosa testemunha da História, que depõe para o futuro com o destemor dos crentes. Aliás, há em suas palavras o cunho místico que marca a alma do povo russo, profundamente religioso, povo messiânico apesar de todas as pressões e compreensões políticas. Ele acredita, como Cristo, que “a Verdade vos libertará”.

Por isso é que diz, em declaração que assinou, recentemente, para os jornalistas ocidentais:

“A confiança de todo o mundo em nosso país só poderá aumentar se reconhecermos que nosso passado está saturado de terror e o condenarmos com a energia necessária, e não somente com palavras vazias”.


Torrieri Guimarães – Jornalista, escritor, crítico literário. Prólogo do livro Uma palavra de verdade...de Alexander Solzhenitsyn, 1972, Hemus – livraria editora ltda.


Relendo Dostoievski


Por: Gustavo Corção



Passei meus dias de carnaval relendo pela quarta ou quinta vez Crime e Castigo e terminei a leitura aturdido e maravilhado, como se pela primeira vez tivesse percorrido o mundo noturno e transluminoso em que a miséria humana tem uma estranha fosforescência. Como se... Não! Efetivamente li-o pela primeira vez. Um livro, ou pode ser lido dez vezes pela primeira vez ou não pode, não deve, e não vale a pena ser lido. Não ouso entrar no mérito com ares de quem quer explicar e interpretar uma obra de tal quilate. Mas não consigo deixar de transmitir algumas idéias sobre o livro, antes de publicar outras idéias que indiretamente me vieram da mesma leitura.

Há em Crime e Castigo, como não me lembro de ter visto em nenhum outro romance, uma prodigiosa densidade de bondade humana, sim, de uma bondade potencializada pelo sofrimento, torturada pelos entrechoques e atritos, perseguida por quase visíveis demônios, mas ainda assim resistente às máximas dilacerações. Estranho mundo em que as categorias morais parecem viradas pelo avesso, e onde se vê santidade nas mais desclassificadas criaturas! Em todo o livro um só personagem nos dá até fim, quase até o fim, uma terrível impressão de alma perdida, não pelo fato de ter assassinado a velha, mas pela insistência com que se atribui o titulo de único juiz de seus atos. Raskolnikov é o “intelectual”, como Ivan Karamazov, e é só na última página, num epílogo que nenhum escritor moderno teria coragem de escrever com receio do happy end, que Jesus crucificado, servindo-se do amor puríssimo de Sônia, a ex-prostituta, expulsa o demônio e devolve Rodion Romanovitch Raskolnikov à comunhão dos homens que neste mundo de mil maneiras imitam a agonia do Salvador.

O mundo hoje está cheio de “intelectuais” que não matam a velha usurária diretamente com um machado na cabeça por falta de grandeza: coletivizados, tornados multidão, cada um deles é um liliputiano que seria pouco temível se não fora o volume e o peso da massa. E o que essa massa espessa quer abafar, quer matar no mundo é a última confiança na bondade fundamental de que são portadores os homens mais miseráveis. Sim, o que cada um dos microscópios “intelectuais” quer produzir é um mundo cinzento, desoladamente imunizado dos choques, dos esbarros trágicos capazes de revelar as divinas centelhas escondidas na dureza da pedra.

A leitura de Crime e Castigo me trouxe a convicção melancólica de estarmos vivendo uma depressão histórica. O mundo inteiro está passando por um processo de laminação, de mediocrização, de perseguição de um conforto elementar e não creio ser possível em algum lugar deste mundo de hoje alguém escrever um livro como este e outros de Fiodor Dostoievski. Quem sabe se não seria melhor, mais higiênico, mais decente, calarmo-nos todos durante um milênio? Há livros demais. Creio que mil anos seria pouco para que toda humanidade alfabetizada relesse devagar, quatro ou cinco vezes, os livros merecedores de tal atenção. Por que essa sofreguidão de atos sucessivos, de leituras sucessivas? Por que essa correria? Por que não se recupera a humanidade a cadencia que lhe é própria? As editoras se multiplicam, os autores se improvisam, o crepitar, da maquina de escrever substituiu o compassado curso da pena no papel. E o resultado dessa atividade febril é a produção de dez mil livros, cem mil livros que não fariam falta nenhuma ao céu, à terra, às almas dos homens, se acaso não fossem escritos. Há em tudo isto uma estranha contradição: de um lado, a produção gigantesca, a montanha de livros que pediria vidas largamente acampadas no presente; de outro lado, a correria. Se queremos correr por que nos sobrecarregamos de tamanho bagaço?

Eu tenho um antigo e enraizado amor por livros. O que acabei de reler está deitado na mesa com sua lambada marrom e letras douradas. É um livro-livro, um livro que a humanidade levou milhões de anos a fazer. E o que está dentro dele é também uma seqüência de sinais que a humanidade, entre muitos ensaios e malogros, levou milhões de anos a conseguir. E ali está um livro, um libro, a book. Em russo não sei como se diz. E quando digo livro, libro, book estou pensando numa jóia mais rara e mais maravilhosa do qu a viagem à Lua. De tudo o que o homem tem feito na Terra, para dar contas d si e dizer ao que veio, creio que o livro é o ponto alto. E por isso mesmo se deduz que a maior degradação cultural do homem se mede em côvados de facilidades editoriais, e em quilômetros cúbicos de papel impresso com coisa nenhuma. Todas as grandes religiões têm na base de seu culto um livro. A nossa religião tem a originalidade de possuir um livro escrito com caracteres humanos, por mãos humanas, mas soprado por Deus. Ele mesmo o ditou.

Estou aqui recordando uma novela do mesmo Fiodor Dostoievski que li há cerca de mil anos. De memória dou o esboço do primeiro capitulo: num vilarejo do interior da Rússia um velho violinista vivia com sua filha ou neta Sonetchka. Um dia chega-lhe a notifica da passagem de um violinista de fama mundial pela cidade mais próxima. O velho siberiano prepara o trenó, agasalha-se, despede-se da neta e parte de manhã. Chega à noite, muito tarde. Vem curvado, abatido. Abre a caixa de seu violino, tira-o, tenta tocar... Recoloca- na caixa cuidadosamente, sobe ao sótão, traz uma corda, amarra uma ponta na soleira da porta, dá um laço no pescoço e sobe na cadeira. De manhã Sonetchka acorda aos gritos quando vê o avô pendurado e com a língua para fora.

Em termos menos trágicos, Chesterton disse que todos os homens devem fazer por si mesmos certas coisas tais como assoar o próprio nariz, educar os filhos, votar etc., ainda que as façam malfeitas; mas poucos homens devem escrever livros, pintar quadros, modelar esculturas, porque essas coisas só devem ser feitas se esses poucos são capazes de fazê-las sem desonra do planeta que talvez seja o único habitado por seres capazes de tais obras.

O leitor inamistoso estará perguntando se eu também não senti vontade de me enforcar quando acabei de reler Crime e Castigo. Se lhe agrada saber, malvado leitor, confesso que tive grande vontade de enforcar o pobre e inútil livro em cima do qual ingloriamente me mato.