terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A autoridade do arquétipo em face do igualitarismo nivelador

Fernando Rodrigues Batista

«A autoridade do Arquétipo surge, em síntese, como uma imperiosa e essencial necessidade do homem, que deste modo vem a quebrar o que pudera dar-se de nivelação, de igualitarismo ou de sujeição à uniformidade gregária. A autoridade do Arquétipo, sua presença refulgente, aglutinante e diretriz, é um reclamo natural do espírito, é um silencioso pedido que emana da vocação hierárquica do homem, da peremptoriedade por subordinar-se a uma Ordem e a um Ordenador, em una obediência que é a chave da verdadeira liberdade». Antônio Caponnetto


Em livro recente, Los Aquetipos y la história, o pensador argentino Antônio Caponnetto faz notar que desde os bancos escolares se descura do dever de fazer religar as inteligências à Verdade e à Sabedoria, posto que as instituições de ensino se converteram em mera instituição pragmatista, que cinge seu ofício unicamente em formar profissionais – de matiz notadamente utilitarista -, restrita, portanto, na ação, no êxito e na eficácia.
A este propósito Delgado de Carvalho acentua que “a finalidade da geração atual não é formar cavaleiros medievais, mas sim fabricar homens eficientes em suas profissões”.
O ideal concebido é o do homo faber, industrial, produtivo, consumidor.
Uma escola semelhante, certamente despreza os arquétipos, pois lhes repugnam os modelos.
Estes colégios buscam a chamada integração do aluno a sociedade atual, sobre a base do horror ao singular, substituindo o ideal do arquétipo pelo da inserção na multidão. O reino da quantidade necessariamente afasta os autênticos modelos.
Busca-se formar uma criança que se insira a vida cotidiana, à vida do homem comum, com a escala de valores predominante, que se modificam de acordo com os vai e vens da opinião pública.
Este tipo de formação educativa se baseia no igualitarismo. Em homenagem a ele, o colégio deverá esquecer a apresentação modélica de personalidades excepcionais, os chefes, os santos, os gênios, porque tais personagens são anormais. Os arquétipos se vêem imolados nas aras do igualitarismo informe.
Anzoatégui dizia na época em que Kruschve, no período de sua Perestroika, fustigava duramente a política de Stalin por haver fomentado o culto a personalidade: “A condenação do culto da personalidade é uma das mais baixas abominações modernas. Importa o triunfo do culto da mediocridade, a democratização dos valores humanos, a abolição da faculdade de admirar, de render pleito – homenagem ao ser superior – que é faculdade inerente à personalidade humana. Stalin foi um criminoso. E o temos como tal. Mas não pelo delito de ter se conduzido como um medíocre. Porque é preferível admirar o Diabo a não admirar o Diabo nem a Deus. O primeiro é o diabolismo que tem como remédio o exorcismo; o segundo é o eunuquismo que não tem remédio”.
Eis a expressão terrível de Victor Hugo: “Egalité, traduction politique de mot envie”. Daí, a inspiração remota do princípio político da igualdade absoluta não ser outra que a tentação demoníaca de nossos primeiros pais no paraíso: “sereis como deuses”, pecado que mescla o orgulho com a soberba, anelo prometeico de igualar-se a Deus, rejeição de toda superioridade, de todo arquétipo.
Não em vão afirmava La Rochefoucauld que os espíritos medíocres condenam de ordinário tudo o que está além de seu alcance.
É o triunfo da tibieza, dos homens castrados. O processo igualitarista de nosso tempo é a expressão mais cabal de uma sociedade decadente, que considera impossível a vontade de ser alguém, que dilui irremediavelmente o pathos das distâncias.
A presunta justiça através da igualdade é de fato a injustiça para com os melhores, e, portanto para com todos, privados da liberdade dos melhores.
Já no século passado, Alexis de Tocqueville profetizou um espetáculo deste gênero: “Quero imaginar sobre que novos traços o despotismo pode produzir-se no mundo: vejo uma multidão de homens semelhantes e iguais, que dão voltas sem descanso sobre si mesmo para procurar pequenos e vulgares prazeres que alimentem sua alma”.
No âmbito das escolas se adverte o sentido antimodelico que toma o ensino da História, a matéria que mais se presta para exaltação dos arquétipos:
“Nunca de chegará à compreensão histórica – escreve Huizinga – se não visualizarmos a imagem dos indivíduos que foram os primeiros em conceber os pensamentos, que ganharam ânimo para agir, que se arriscaram e saíram vitoriosos onde outros muitos se entregaram ao desespero”.
Nesse sentido, Hesíodo e Homero, apesar de não terem sido historiadores, em sentido estrito, senão poetas foram autênticos educadores através da história, porque ao expor as façanhas dos heróis, ensinavam implicitamente o dever-ser do cidadão da polis.
“Não é o conhecimento do cotidiano – diz Caponnetto -, do que é variável e passageiro o que aperfeiçoa as almas, senão o deter a atenção nos gestos, nos atos, nos pensamentos, que venceram a fugacidade diária, que conquistaram uma margem na história e por isso voltaram a ser atuais, ou seja, permanentes, de interesse constante”.
Homero é atual esta manhã e o jornal hoje já envelheceu dizia Péguy aludindo essa contemporaneidade do superior, em contraste com a caducidade dos sucessos ordinários. Bem escrevia Chesterton: “A tradição não quer dizer que os vivos estão mortos, senão que os mortos estão vivos”.
Hoje se prefere outro ensino da história, adequada à superficialidade do ambiente. Uma história não comprometida, profissionalista e descritiva, quimicamente pura, sem adjetivos, e, se é possível, sem substantivo, em última instância, uma história amorfa, informe e incapaz de formar.
A história que se ensina hoje é aquela que desterra a memória. Solzhenitsyn denunciou o sinistro plano que em seu tempo elaborou o regime marxista para destruir a memória de sua pátria mártir em aras da gestação do «homem novo». Bem ressalva Antônio Caponnetto que «a história é a memória dos povos, e uma nação submetida à substituição sistemática de sua memória acaba no esquecimento».
A preterição das raízes e dos arquétipos fundacionais, não tende senão a engendrar aqueles «cidadãos do mundo» que propicia a política educativa da UNESCO, sobre a base da abdicação do nacional em vista a consolidação de um mundo homogeneizado.
O ensinamento de uma história sem raízes torna-se indispensável para levar adiante o projeto de uma sociedade fabricada próspera e esterilizada. Fazer de cada país uma peça de xadrez no tabuleiro da Nova Orden Mundial.
Daí a magistral lição de Heraldo Barbuy (infelizmente desconhecido até mesmo entre nós, fruto justamente da hegemonia da concepção marxista do ser e da história) que salienta que “a noção homogênea do espaço científico, abolindo países e paisagens, diversidades e vivências, coincide com a projeção desse espaço no mundo fabricado, onde tudo se torna uniforme, standard, trajos e moradias, leis e regimes, desejando uma idéia científica da unidade do mundo, que é o posto de toda verdadeira unidade. Porque realmente a unidade supõe a variedade, a adesão a princípios sucessivamente mais altos que fundem um ápice espiritual, simbólico e superior”.
E acrescenta ainda o insigne filósofo que anulada, porém a existência do Deus vivo e concreto, toda hierarquia se desfez e toda unidade desapareceu; o sucedâneo da unidade é essa idéia de “um mundo só” que é a negação de toda unidade, de toda variedade e que é o conceito despótico do internacional. O internacional é o espaço científico, homogêneo, indistinto, coletivo; é a liquidação de toda peculiaridade. Já não há mais horizonte ao redor, um horizonte próximo. O sentimento da proximidade desapareceu com a uniformidade do espaço e com a supressão do locus; estamos sempre no mesmo treco de espaço, porque todos os trechos são indistintos; não havendo mais proximidade, também não há mais distância; a supressão das distâncias pela técnica se dá no espaço projetado pela ciência; não já mais distância, nem proximidade, porque o próprio espaço se tornou irreal, o fruto de uma abstração, o resultado de uma negação da realidade e da unidade do mundo.
Mas o tema dos modelos, dos arquétipos, não se refere apenas as nações e, por conseguinte, ao estudo da história universal e pátria, senão que tem haver também com o homem individual. São dois aspectos que se vinculam entre si. Porque o imanentismo da visão histórica tem por termo que a significação dos fatos se inicie e se esgote no homem, um homem feito a imagen e semelhança de si mesmo. É o drama do antropocentrismo (antropoteismo no dizer de Miguel Ayuso) contemporâneo, de um homem sem referências nem religações que o transcendam.
O fato é que assim como não existe ensino verdadeiro da história sem se ater aos paradigmas, tampouco há realização do homem sem contemplação de seus arquétipos.
O significado da palavra arquétipo, remonta a tradição cultural do mundo grego. Typos, primitivamente, significava golpe, ruído feito ao golpear, marca deixada como conseqüência de um golpe. Arjé agrega o sentido de princípio, originalidade. Portanto: golpe ou marca original.
O homem é um ser essencialmente instável e está feito para transcender-se, tem a vocação da transcendência. Não pode reduzir-se a permanecer nos limites de um humanismo enclausurado em si mesmo: ou se transcende elevando-se, o se transcende degradando-se; ou se transcende para cima ou se transcende para baixo.
Segundo Max Scheler, o núcleo substancial do homem se concentra neste impulso, nesta tendência espiritual a transcender-se.
Gustave Thibon assim se expressa: modo: «O homem apenas se realiza superando-se; não chega a ser ele mesmo senão quando ultrapassa seus limites. E, para dizer a verdade, não tem limites, senão que pode, segundo abra ou feche a porta a Deus, dilatar-se até o infinito ou reduzir-se até o nada».
Nesse sentido, nada mais repugnante que a expressão: «cada qual deve aceitar-se como é». Os arquétipos e modelos são propostos a nossa consideração precisamente para que não nos aceitemos como tais, senão que optemos a transcender-nos. «Somos viajantes em busca da pátria –dizia Hello– temos que levantar os olhos para reconhecer o caminho».
Conta Cervantes que os rústicos que escutavam Don Quixote terminavam extasiados por seu discurso. É que aquelas palavras candentes lhes permitiam reencontrar-se com o melhor deles mesmos, elevando seus corações acima da trivialidade cotidiana.
Dizia Heidegger que a existência banal está feita de abdicação e termina no fastio e na angustia, reclamando algo mais que a preencha e a sacie.
Conforme assinala Alfredo Sáenz, é Deus quem pos em nós essa atração pelo sublime, essa necessidade ontológica de superar-nos, de ser distintos e melhores do que somos (e não necessariamente do que os outros), esse anelo de quebrar o círculo estreito das apetências menores.
Com justeza fez notar Heraldo Barbuy que, "se há um significado no terrível drama da alma contemporânea, este só se pode dar na consciência de que é preciso devolver ao homem o sentido da sua vida, que não é outro senão o sentido do religioso, buscando, como os cavaleiros do Graal, através das jornadas indizíveis, o objeto transcendente da existência. Porque se a vida tem um fim, este não pode ser senão um fim que transcende à vida; se a transcendência estivesse na vida mesma, como dizem Heidegger e outros existencialistas, então a vida seria o fim de si mesma, o que é o mesmo que dizer que a vida não tem finalidade, nem sentido, Nada tem sentido se Deus não existe. Mas, se Deus existe, viver é transcender-se, é superar-se; eis porque, todos os tempos que acreditaram em Deus, acreditaram no herói".
Assim, somente tendendo ao superior chegamos ser autenticamente nós mesmos; somente cedendo à atração das alturas saímos de nossa subjetividade e nos fazemos capazes de por nossa vida ao serviço de Deus e dos demais.
Eis a decisão radical na vida de cada homem: ou sucumbir a mediocridade, deixando-se deslumbrar pelo brilho das coisas que lhe são inferiores, ou propor-se uma existência vertical, com sua inevitável cota de renúncia e de sacrifício, uma existência orientada para a contemplação do Arquétipo e a emulação de suas virtudes.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O Coletivismo contra o Social

GUSTAVE THIBON, foi autodidata genail, nasceu em 2 de set de 1903 em Saint-Marcel-d'Ardèche (França), onde foi sempre lavrador. Não foi um homem de diplomas e títulos. Estudou por si só o grego e o latim, os "Diálogos" de Platão e a filosofia de Aristóteles, a "Suma Teológica" de Santo Tomás. Deu-nos páginas luminosas de "Diagnósticos de Fisiologia Social", "O que Deus uniu", "A Escada de Jacob" e outros volumes de aforismos penetrantes, que são como flechas agudas atiradas para todos os lados. Poucos como ele compreenderam profudamente o homem e a mulher, o amor humano e o casamento. Thibon é o testemunho que se oculta para deixar brilhar a verdade em todo o seu esplendor. Ele mesmo disse: "Eu não aspiro a iluminar os homens com a minha lanterna: minha única ambição é ajudá-lo a melhor contemplar o sol".


O coletivismo não reúne os homens senão para melhor os isolar.
Ele os separa uns dos outros, na medida em que os amontoa uns sobre os outros. Assim, os grãos de areia no deserto formam uma imensa massa homogênea, mas os elementos que constituem essa massa não tem entre eles nenhum vínculo interno: é a própria imagem da Cidade Totalitária em que a solidão aumenta em função da promiscuidade.
A maqueta da Cidade Futura, nós a temos já nos grandes conjuntos anônimos que crescem como cogumelos ao redor de nossas cidades e dos quais transpira, para fora como para dentro, a lepra da uniformidade e do tédio; nos rebanhos humanos em que o "condutor" substitui o pastor; nesse desenraizamento geral que solta os indivíduos, como folhas mortas, ao vento da moda e da opinião; nessa fabricação em cadeia de consciências teleguiadas que são cevadas de abstrações e de quimeras ao invés de serem nutridas de realidades.Falam-nos de bom grado da "dimensão planetária" da humanidade de hoje.
Mas quem não vê que onde essa nova dimensão (que, alias, não é nova: todos os santos conheceram essa paixão da humanidade) não tem por fundamento e por caução um apego vivido ao próximo imediato e uma experiência de responsabilidade pessoal, ela não pode ser senão ilusão e engano? É muito bonito ser cidadão do mundo, mas é preciso começar por não ser apátrida.
Saint-Exupery refere-se a este dialogo entre um homem apegado à sua terra e um desenraizado:
"Você está partindo? - Sim. – Para onde? – Para Melbourne. – Como você estará longe! – Longe de onde?" Com efeito, não há distâncias para o desenraizado. Ele não está longe de nada. Mas, em contrapartida, ele não está ligado a nada: a palavra próximo não tem o menor sentido para ele.
Nessa ordem, o uso imoderado das facilidades de comunicação – quer se trate de deslocamento no espaço ou de informação – arrisca comprometer nossa capacidade de comunhão. O próximo se distância à medida que o longínquo se aproxima. E ainda não se aproxima senão em aparência: por palavras e por imagens.
O que pensar, por exemplo, desse cidadão inconsciente e organizado (mecanizado caberia melhor) que se apaixona pela guerra do Vietnã e que ignora os problemas e talvez mesmo a existência de seu vizinho de andar – que ignora até o seu próprio problema, pois não se da conta de que não entende nada das questões acerca das quais é pedido que tome partido. E esse homem, arrancado de seu próximo e de si mesmo, vive em sonho a duas mil léguas.
Diante dessa ameaça – já em parte realizada – do formigueiro futuro, Teilhard afirma com um otimismo intrépido: "não há formigueiro se as formigas aprendem a se amar".
Mas como poderiam elas aprender a se amar se a própria construção do formigueiro implica na eliminação das condições de amor, na erosão do terreno social de que ele precisa germinar?
É aqui que se aplica a fundo a parábola da semente e do solo: o grão divino aborta sobre um solo humano muito empobrecido. Vitor Hugo, num clarão de lucidez profética, coloca estas palavras na boca de não sei que Demos informe, construtor da Cidade coletivista e igualitária: "eu sou tudo, o inimigo misterioso de Tudo".- O número, túmulo da unidade: é aí, com efeito, que desemboca a miragem coletivista. Uma cidade em que une seus habitantes enquanto cifras e não enquanto pessoas. Que faz a soma e não a síntese. E que, em última análise, se edifica sobre as ruínas do homem real.

Um organismo – se isso se pode dizer! – em que a prótese substituiu os membros: no limite, os ídolos absorvendo seus adoradores – UMA SOCIEDADE SEM HOMENS.



Fonte: Revista Hora Presente, São Paulo, set/out de 1968, n° 1, p. 127/128.